Livro de viagem (apesar do título): “Primeiro eles mataram o meu pai”

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Loung Ung e seus pais quando criança no Camboja

Um dia, durante minha primeira viagem pelo Sudeste Asiático, eu almoçava em um restaurante da cidade cambojana de Siem Reap quando um homem sem uma perna e um braço chegou na mesa. Se equilibrando em muletas e com um saco plástico pendurado no braço remanescente, contou num inglês bem compreensível que, como milhares de conterrâneos, tinha perdido os membros num acidente com uma mina terrestre e não podia mais trabalhar. Agora, vivia de vender livros para os viajantes, e acabou me convencendo a comprar uma autobiografia que, segundo ele, seria a obra ideal para conhecer a história de um dos países mais sofridos da Ásia.

First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers (“Primeiro Eles Mataram Meu Pai: Uma Filha do Camboja Lembra”) foi a narrativa mais envolvente e aterradora que já li. Nele, a cambojana Loung Ung conta a história de sua vida, que começou como a de uma menina qualquer em uma família classe-média na então próspera capital Phnom Penh, e passou por uma reviravolta assustadora quando o partido comunista Khmer Rouge tomou o poder, em 1975. Ela só tinha cinco anos quando tudo aconteceu, e conforme a história vai se desenrolando, o leitor sente seu desespero quando os soldados expulsam os moradores da cidade. É impossível não se envolver com o sofrimento e a luta da família Ung pela sobrevivência.

A capa do livro, com a foto da autora quando criança
A capa do livro, com a foto da autora quando criança

Capitaneado por Pol Pot, o Khmer Rouge, que dominou o país por quatro anos, pregava a superioridade da sociedade agrária. Por isso, realizou reformas radicais, que incluíram o confisco das propriedades privadas, a abolição do sistema financeiro e bancário, o total isolamento das influências estrangeiras e o fechamento de hospitais, escolas e fábricas. A população das áreas urbanas foi transferida à força para fazendas coletivas e obrigada a fazer trabalhos agrícolas. O resultado disso foi o total retrocesso do Camboja e o genocídio de aproximadamente dois milhões de pessoas – um quarto da população – por execuções em massa ou por fome, doenças e cansaço.

O destino dos integrantes da família de Loung não foi diferente do dos outros cambojanos: eles foram obrigados a viver em pequenas vilas e lutavam para esconder seu passado, pois o pai trabalhava para o governo anterior e os soldados não perdoariam se descobrissem isso. Tentavam resistir enquanto as pessoas à sua volta morriam, mas aos poucos a família vai sendo dizimada também. Primeiro, como o título do livro diz, os soldados levam o pai, que nunca mais é visto. Depois, os irmãos são mandados para um campo de trabalhos forçados, a irmã mais velha vai para outro vilarejo e morre; e, aí, a mãe é obrigada a mandar três das quatro crianças sobreviventes para outros campos, por não ter mais condições de cuidar delas. Foi assim que Loung, aos sete anos de idade, acabou indo parar em um campo de formação de soldados infantis, onde foi treinada das formas mais terríveis para se tornar um dos membros do exército comunista.

Ler esse livro durante a minha viagem pelo Camboja foi algo muito especial, por estar exatamente no lugar onde tudo aconteceu e poder perceber os efeitos no presente do que se passou há mais de 30 anos. Visitar os killing fields (campos onde milhares de pessoas foram executadas pelo regime) e ver todas aquelas caveiras expostas nos mausoléus foi ainda mais impactante por entender a história e saber que aquelas eram pessoas como você e eu, que viviam vidas pacatas como as nossas, até que um dia alguns malucos tomaram o poder e mudaram tudo de uma forma que nem é possível imaginar acontecendo em nossa realidade. Quando estamos longe e lemos sobre isso rapidamente nos livros de História, não sentimos nenhum impacto. Mas quando se está lá e se lê na biografia de alguém sobre o dia em que viu a vizinha desenterrando o filho que tinha morrido de fome para comer as larvas que devoravam o cadáver, tamanha era a fome que sentia e a loucura resultante disso, você realmente se dá conta da intensidade e crueldade de tudo aquilo.

Entender o Camboja e sua história turbulenta é essencial para aproveitar melhor a viagem e ser mais tolerante com as peculiaridades de um país que, apesar de lindo e muito interessante, tem uma mendicância tão intensa que beira o insuportável. E indo além, mais do que se preparar para uma viagem que pode ser tão marcante a ponto de transformar de muitas formas o jeito de o viajante encarar a vida, First They Killed My Father é uma leitura indispensável para qualquer pessoa que tem interesse em saber mais sobre uma parte pouco falada do mundo – distante muitos anos-luz da realidade de Eurotrips e compras nos EUA – mas com uma história riquíssima quem tem muito a ensinar ao Ocidente, tanto para o bem, ao mostrar o incrível poder humano de resiliência, quanto para o mau, como um indicativo assustador do que acontece quando um movimento político se torna tão forte a ponto de subjugar toda uma nação.

Sobre a autora:

Pelo menos Loung teve um final “feliz”, por assim dizer: emigrou para os Estados Unidos e hoje vive em Ohio com o marido. Se tornou ativista e viaja o mundo atuando na Campaign for a Landmine-Free World, uma ONG de combate às minas terrestres (como as que o Khmer Rouge espalhou pelo Camboja), e contando sobre sua vida. Além desse livro, ela também escreveu dois outros, “Lucky Child – A daughter of Cambodia reunites with the sister she left behind”, sobre o reencontro com sua única irmã sobrevivente; e “Lulu in the sky”, sobre sua ida para os EUA e o início de sua atuação como ativista. Para quem quiser saber mais, a autora também mantém um site, com muitas informações sobre suas campanhas como ativista e sobre o Camboja.

Loung Ung atualmente, em uma de suas palestras
Loung Ung atualmente, em uma de suas palestras

Sobre o livro:

First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers

Lançado em 2000 pela editora Harper Collins, 282 páginas

– À venda na Amazon, também disponível como ebook e audiolivro.

Umas fotos da minha viagem ao Camboja, para ilustrar:

* Tiradas na cidade de Siem Reap

Entrada de um dos killing fields
Entrada de um dos killing fields
Um dos mortuários... não dá pra ver na foto, mas ali dentro tinham milhares de caveiras das vítimas do Khmer Rouge
Um dos mortuários… não dá pra ver na foto, mas ali dentro tinham milhares de caveiras das vítimas do Khmer Rouge
Lá também tinha um cemitério para alguns dos mortos...  (Disfarça que eu tô rindo, não é desrespeito não, só uma tentativa de disfarçar porque fico ainda pior quando saio séria em fotos... rs)
Lá também tinha um cemitério para alguns dos mortos… (Disfarça que eu tô rindo, não é desrespeito não, só uma tentativa de disfarçar porque fico ainda pior quando saio séria em fotos… rs)
Lá tem muitos pedintes e crianças vendendo coisas em todos os lugares e a toda hora
Lá tem muitos pedintes e crianças vendendo coisas em todos os lugares e a toda hora

 

 Mais um vendedor mirim
Mais um vendedor mirim
Como a gente diz não pra essa carinha?
Como a gente diz não para essa carinha?

 

Pra ver como o Camboja ficou atrasado... isso é o posto de gasolina da segunda maior cidade do país
Pra ver como o Camboja ficou atrasado… isso é o posto de gasolina da segunda maior cidade do país
Na entrada de Angkor Wat, uma das principais atrações turísticas da Ásia. Lindo demais!
Na entrada de Angkor Wat, uma das principais atrações turísticas da Ásia. Lindo demais!

 

Nos templos tem várias bandas de pessoas com deficiências por causa das minas terrestres. O som que eles fazem é muito interessante, vale parar pra ouvir.
Nos templos tem várias bandas de pessoas com deficiências por causa das minas terrestres. O som que eles fazem é muito interessante, vale parar para ouvir
Minha foto favorita - com criancinhas locais no templo. O pessoal de lá é muito simpático e caloroso!
Minha foto favorita – com criancinhas locais no templo. O pessoal de lá é muito simpático e caloroso!

 

Comentários

4 COMENTÁRIOS

  1. Conhecer através do relato da leitura, cria em nós o conhecimento, o sentimento adormecido e emoções q nos levam a viagens em “mares nunca antes nvegados” por nós!

  2. Acabei de assistir o filme, de igual título do livro baseado no mesmo. Impactante. Ter a experiência de vivenciar o local entendendo todo sofrimento do passado, ajuda a compreender o presente, tornando a viagem ainda mais interessante. Parabéns!

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